Cuidar – ato de amor e dor, alegria e coragem

Eis um tema que há tempos queria falar, mas devido a sua imensa delicadeza, evitava, até que ao começar a ler o livro “A casa que não pode cair” deparei-me com as palavras de Júlia Jalbut falando de nossas emoções quando estamos a cuidar.  ‘O que está debaixo do tapete vem à tona e o que está dentro – luz e sombra – vaza pelos nossos poros’.  Li e reli a última frase, pois é de uma profunda beleza para com as nossas fragilidades humanas. Esta é uma frase que requer coragem para ser dita.

Quando cuidamos, passamos por momentos tão delicados; a pessoa que cuidamos, por mais que a amemos, de vez em quando cria situações tão insanas que nos desequilibram; quando isso acontece aquelas emoções e sentimentos escondidos, até de nós mesmos, escapam de seus esconderijos e vazam por nossos poros sem a gente perceber ou consiga conter.

Qual o lado bom destes momentos? Percebemos que continuamos humanos. É o nosso pior que está vindo à tona? Sim. Afinal, a pessoa cuidada ao estar doente, também perde o seu verniz de civilidade às vezes cultivado ao longo dos anos, e você se assusta com palavras e gestos, os quais você nunca tinha presenciado antes, naquela pessoa.

Portanto, a ação de cuidar também oferece essa oportunidade única de nos conhecermos por dentro. E essa viagem para dentro nem sempre é fácil. Pode ser assustadora, exige da gente a construção de novos hábitos e a eliminação de muitos outros, que nem sabíamos o quanto poderia ser danoso no nosso dia a dia. Para nós e para o outro que convive com a gente.

Enquanto você cuida, aprenda a não abrir mão de seus projetos de vida, pois não é fácil conciliar. Mas é bem mais difícil se você abrir mão de tudo. Porque quando você decidir retomar, todos a sua volta vão te achar egoísta. Porque no momento em que voltamos a pensar em nossos projetos de vida a pessoa que cuidamos pode estar em momentos já bem debilitados.

Para nós que cuidamos, pode ser aquele momento de epifania. Quando damos conta da finitude da vida da pessoa que cuidamos e da nossa também. Então precisamos nos perguntar: quando essa pessoa partir, como vou preencher meus dias? As horas da madrugada, que já virou um hábito, o horário do banho da manhã, do café, a hora do lanche, o tempo de adivinhar o que fazer para o almoço, embora seja apenas uma sopa pastosa, batida no liquidificador e peneirada. É preciso ter sabor! Então, quais ingredientes usar?

Somos engolidos pela rotina do cuidar às 24 horas do dia. Uma rotina que é invisível para quem está longe, e não vê e nem quer ver. Pois esta ação exige mudança de atitude e comprometimento.

Construa momentos de você com você, para saber como criar e manter o equilíbrio necessário em todas as áreas de sua vida e o momento de pedir socorro. Uma rede de apoio é essencial. Pois se não fazemos isso, adoecemos. Quando doentes não somos capazes de cuidar nem de nós mesmos, então imagina como vai ficar a pessoa que precisa de nossos cuidados?…

Entre dores na coluna, enxaquecas e excesso de peso, lembrei dos sonhos que acalantei desde criança e de antes de começar a cuidar.  Há sonhos que depois de 20 anos jamais o retomaremos com a mesma roupagem. Já estamos a viver um outro momento. Talvez até possa ser o mesmo sonho, mas atendendo às demandas atuais.

Aos 30 anos tinha certeza que iria escrever sobre contadores de história e criar uma escola para formar contadores de história, para revitalizar essa arte, que tinha iluminado a minha infância e quando adulta percebia que era um hábito que estava se perdendo. Afinal nos finais de tarde as famílias e vizinhos já não se reuniam para ouvir e contar histórias. Elas se reuniam para assistir TV.

Hoje se ensina a contar histórias, para os mais variados fins. Fiz um curso de Storytelling, continuo apaixonada por contadores de histórias. Mas, a história que tenho para contar agora é sobre cuidadores, pois é a ação que estou a realizar com total inteireza. Claro que luz e sombra vazam por meus poros como tão bem descreveu a Julia.

Portanto cuidar é uma prática necessária e pouco comentada. Na qual mergulhamos, sem experiência, treino ou estágio. Você é jogada no palco da vida e começa a desempenhar o papel de cuidadora, na integralidade de dor, amor e alegria.

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Maria Rejane de Menezes
Maria Rejane de Menezes
5 meses atrás

Pode ter certeza que, ao contar suas histórias hoje da forma que o faz usando o meio digital…não é nada da forma que pensou no passado. E demonstra o quanto é mutável o nosso hoje e que sempre podemos aprender algo ouvindo/lendo histórias.

Kelem Cristina de Sene Santos
Kelem Cristina de Sene Santos
5 meses atrás

Que suas histórias sejam contadas e possam iluminar vidas que estejam desesperançadas a precisar de cuidados e/ou a cuidar.

Zenil Silva
Zenil Silva
5 meses atrás

Contar história é uma tarefa antiga e fundamental para a revitalização da cultura. Cuidar dos idosos, valorizar seus ensinamentos e respeitá-los faz parte da cultura de muitos povos, infelizmente na nossa cultura “civilizada” isso está se perdendo. Seu trabalho de contar história dos cuidadores chama a atenção para essas duas tradições e, de certa forma, une as duas pontas desse laço familiar.