Hoje é o aniversário de meu pai 95 anos, quase um século de vida. Acredito que talvez ele tenha vivido intensamente por 70 anos. Digo talvez porque sou eu que estou dizendo e não ele. Quando ele teve AVC aos 70 anos, embora seus pensamentos fossem lúcidos, nunca mais ele conseguiu expressá-los com desenvoltura em palavras. Pois a parte do cérebro que comanda a fala ficou prejudicada.
Ele sempre foi lavrador, adorava consertar máquinas de costura e armas de fogo, em tempos idos, nos finais de semana era cabeleireiro, amava caçar, em uma época em que essa atividade era permitida e também gostava de assistir jogo de futebol. Em cidades pequenas é muito comum no domingo à tarde ir para o campo assistir jogo.
Entretanto, nos últimos vinte e cinco anos ele começou a morrer. E posso dizer que meu pai se adaptou ao máximo as novas condições de vida. Pois nos primeiros setenta anos. Pelo menos os que estive por perto, jamais tinha visto ele pegar em uma vassoura, ou recolher uma roupa no varal. E depois do AVC ele passou a fazer estas atividades, sem que tivesse sido solicitado.
Quando meu filho nasceu, penso que talvez tenha sido um brinquedo para ele. Nunca deixou Pedro guardar os brinquedos.
Hoje Pedro o pega pela mão e o ajuda a chegar no carro. Seus passos estão curtinhos, todos os dias deseja ir embora para a casa dele. Durante a pandemia essa vontade de ir embora ficou mais intensa, pois não podíamos mais fazer os passeios de costume. Então, por várias vezes precisei colocar travesseiros e edredons dentro do carro para ser a mudança e darmos uma volta pela cidade. Ao chegar em casa novamente já estava tudo bem.
Além de seus passos curtos, agora ele não dá mais conta dá sua higiene pessoal, quando vai ao banheiro as paredes brancas, podem ser coloridas de amarelo. Com frequência sai feridas no bumbum. E qualquer pessoa que cuide de idoso sabe que com o tempo fica difícil a cicatrização. Parou de consumir os alimentos sólidos, está na fase dos alimentos pastosos.
Outra mudança marcante é a pele, deixou de ser áspera, queimada de sol e com marcas do cabo de enxada na mão. Agora, suas mãos são lisas e suaves ao toque, a pele é fina e delicada, precisa de hidratante com frequência.
Chegou também a fase dos delírios, o mais recorrente são homens a cavalo no portão de casa, que querem entrar e isso o deixa alterado. Pois ele precisa ir até lá para mandá-los embora. Penso que talvez seja as lembranças da juventude no Ceará. Também faz parte dos delírios sempre achar que uma pessoa diferente em casa, vai roubar suas coisas.
Mas, tem uma coisa que ele não perdeu, a vaidade. Sua barba precisa ser feita toda semana. Como é careca, não fica sem boina de jeito nenhum. No dia que ele levanta da cama e aparece na sala sem ela, já sabemos que ele não está bem.
Algo difícil, meu pai continua sendo um cearense autoritário. E essa característica com o passar do tempo ficou mais exacerbada. Pois nem sempre suas ordens atuais são executáveis.
Entretanto, ele sabe como salvar o dia. Diz um “obigado viu” tão verdadeiro para uma xícara de café e um prato de mingau, capaz de derreter qualquer raiva que ele tenha produzido anteriormente. E tem o sorriso mais genuíno e verdadeiro para rir de qualquer coisa que você faça e de errado. É alegre, sorridente e as crianças gostam de brincar com ele.
Sou a pessoa que mais conversa com ele. Procuro sempre fazer perguntas que ele possa responder com sim ou não.
Há vinte e cinco anos sinto saudades das nossas longas conversas. Mas aprendi a ler pele, boca, olhos e silêncio…
Sei que não irás mais pisar a “Terreiro duro”, aquela sela que sua irmã guardou por anos a fio, já foi carcomida pelo tempo. Qualquer dia desses vou para o Ceará e caminharei pelo chão que você caminhou, talvez o vento, as ondas do mar e a energia deixada pelos ancestrais me conte as histórias que você não teve tempo de contar.
Há uma década, quando minha mãe morreu, você ficou muito doente e pensei que iria morrer e não tinha condições de lidar com outra perda.
Hoje você precisa de ajuda para sentar, levantar e deitar. Desejo a você Feliz aniversário, afinal é uma honra já ter vivido quase um século de vida. Mas sinta-se à vontade para sair de cena, quando quiser. Vou bater muitas palmas para você.
Vou sempre me espelhar em sua resiliência e silêncio, para continuar a caminhada.
Que texto lindo, diz tudo sobre seu Lírio. Que Deus lhe saúde enquanto viver.👏🏼👏🏼👏🏼
Parabéns pelo lindo trabalho,amo demais vocês, sou suspeita para fazer apreciações , só digo que as minhas lágrimas caíram com a linda leitura …tem poesia e realidade
Que Seu Lírio tenha a certeza de que ele é alvo de muito cuidado, atenção e amor, amor que não se mede, mas que se faz presente em cada pequeno gesto, que supre as suas necessidades de atenção, que adivinha o que ele não consegue mais verbalizar….
Parabéns Sr. Lírio! Parabéns pela sua jornada que com certeza contém um rico roteiro, mesmo que o guarde só para si.
Parabéns também pela sua filha Cícera! Que Deus os abençoem!
Parabéns Sr. Lírio! Parabéns pela sua jornada, que com certeza deve ter um rico enredo, mesmo que o guarde só para si. Parabéns também pela sua filha Cícera! Que Deus os abençoem!