Aqui, Meu Amor. Exatamente Aqui.

O sol da manhã entrava lento pela orla do Paraguai.
O chão, limpo, refletia o brilho da água — sem bituca, sem tampa, sem copo esquecido.
As rodas da cadeira de Aline deslizavam sem esforço pelo piso liso, seguindo a faixa amarela recém-pintada.
O vento batia leve no rosto enquanto ela atravessava a ponte branca.
Ali, o rio parecia agradecer — como se há muito esperasse ser visto assim, cuidado.

Na porta de Dona Lourdes, o agente de saúde apertou a campainha.
— Bom dia, D. Lurdinha. Vim deixar seus medicamentos.
Conferiu o nome, anotou no celular o próximo retorno.
— E seu João?
— Dormindo, como sempre.
— Consulta marcada. Pode ficar tranquila.
Na Cidade do Cuidado, o agente conhecia cada corpo que precisava de atenção.

Na Secretaria de Educação, a equipe multidisciplinar tomava café quando a diretora chegou com uma pasta amarela.
— Novo laudo. Matheus, cinco anos. Autismo leve.
Em minutos, estavam na escola.
Observaram o menino, conversaram com a professora, ajustaram o espaço.
Na semana seguinte, Matheus já tinha um plano de aprendizagem.

O engenheiro parou diante de um quebra-molas recém-feito.
— Pode testar pra mim? — pediu a um cadeirante.
As rodas passaram suaves.
— Agora tá perfeito.
Rampas, sinalização tátil, calçadas contínuas — ali, isso também era obra pública.
Na praça, crianças cadeirantes treinavam arremesso; idosos alongavam; jovens com deficiência intelectual aprendiam novas regras. Risos altos, orgulho discreto.

No anfiteatro da Cultura, o palco tinha altura para olhos que viam o mundo sentados.
O público chegava cedo. Os espaços eram respeitados — sem placas, sem conflito.
Quando o show começou, ninguém bateu palmas.
As mãos se ergueram, ondulantes.
Aplaudir em silêncio era sinal de respeito aos surdos e às crianças sensíveis ao som.
A cidade aprendia a celebrar sem ferir.

Na Assistência Social, mães trocavam experiências, idosos encontravam apoio, jovens pintavam o futuro.
Uma menina de muletas leu o texto que escrevera:
— Aqui ninguém fica sozinho.
As outras assentiram, como quem reconhece uma lei não escrita.

Na Casa dos Autistas, o portão permanecia aberto.
Bruno alinhava frascos; Luiz digitava códigos; Júlia separava pacotinhos coloridos.
Quando o aviso luminoso piscou, todos caminharam para o pátio, cada um no seu ritmo — acompanhados pela professora que sabia quando falar e quando apenas estar.

Na igreja amarela, o padre Roberto arrumava os bancos quando a catequista chegou.
— Vamos treinar linguagem acolhedora, padre.
Ele sorriu.
— Quero que todos se sintam em casa.
Na missa seguinte, o sino tocou baixinho, promessa de cuidado.
A duas ruas dali, o pastor Jonas ensaiava com cartões visuais.
— Nada de discurso de ‘cura’. Aqui falamos de comunhão e respeito.
Na Cidade do Cuidado, até a fé tinha aprendido novas linguagens.

Na lanchonete, o garçom surdo hesitou.
A mulher desenhou no ar o símbolo de “café”.
Ele sorriu, anotou.
— Gosto daqui — disse o homem ao lado. — A gente ajuda e ninguém se sente menor.
Na mercearia, José chegou com dez reais.
— O de sempre, José.
— Sim,

Mais tarde, Maria saiu sozinha.
Andou devagar até a casa de Joana, que reconheceu o som das sandálias.
— Entre, Maria.
Enquanto conversavam, Joana ligou para Ana:
— A Maria está aqui.
E Ana riu, grata por viver num lugar onde ninguém se perdia — sempre era achado.

Ao anoitecer, a orla se encheu.
Cegos caminhavam sem medo.
Cadeirantes e ciclistas dividiam o mesmo chão.
O pintor surdo capturava o pôr do sol.
Os jovens da Casa dos Autistas chegavam com seus monitores.
Aline voltava do trabalho, Elisa fechava o ateliê com um arranjo de lavanda nas mãos.
Uma criança perguntou:
— Mamãe, onde ficam os deficientes?
A mãe olhou ao redor — viu corpos diferentes existindo sem pedir licença.
Apertou a mão da filha e respondeu:
— Aqui, meu amor. Exatamente aqui.
O vento soprou no rosto das duas.
A cidade parecia respirar junto.

A revolução amorosa se constrói com cuidado.

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João Paulo Barbieri
João Paulo Barbieri
3 dias atrás

Que texto lindo! Um sonho de cidade que pode sim se tornar realidade! Parabéns Cicera.

Marizete
Marizete
3 dias atrás

Que lindo minha amiga!
Sonhamos com o dia que essa cidade será real!

Ja está em nossas telas mentais.