E Pedro foi…

Esta crónica nasceu de um dia aparentemente comum — mas que para mim, como mãe atípica, significou muito mais do que uma viagem. Foi o início de uma travessia silenciosa, cheia de ausência, alegria e coragem.

Quinta-feira, 06h00, 2 de outubro de 2025.
Dia inesquecível para muitas das crianças, adolescentes e jovens que participam do Paralímpico em Cáceres-MT, Brasil.

No ginásio de esportes da UNEMAT: mães, pais, irmãos, irmãs. Malas, mochilas, travesseiros, colchões, colchonetes.

Cada mãe e pai recordando aos filhos cuidados básicos. Outros, dando aos professores mil e uma recomendações — sobre medicamentos, alimentação, hábitos.

Muitos com a emoção contida; em alguns, ela escorria pelos olhos.

Para muitos, era a primeira viagem sem a família. Destino: Campo Verde-MT, competição do Paralímpico.

Pedro desceu do carro sem pressa, sem se importar com mala ou mochila.
Tinha aquele sorriso — o mesmo que me desarma desde sempre — e a confiança de quem está prestes a desbravar o mundo.

Vi o ônibus dobrar a esquina como quem some do mapa.

Dentro de casa, os chinelos dele ficaram tortos no canto da sala.
A cama mal arrumada.
O cheiro do travesseiro, intacto.

Preparei o café por hábito. E só então percebi:
não haveria ninguém para pedir o pão sem casca.

Sentei à mesa com a xícara quente entre as mãos, como se segurasse a presença dele ali — líquida, breve, escapando pelo vapor.

Senti falta até das músicas religiosas que ele repete todo santo dia.
Sempre as mesmas. Sempre no mesmo volume.

Hoje, o silêncio ocupou todos os cômodos como um hóspede frio e educado.
A casa parece um mausoléu.
Grande demais. Espaço demais.
E nenhum dos objetos caiu no chão — sem os braços agitados dele, tudo permanece no lugar errado de tão certo.

Mas há uma alegria que me escapa por todos os poros: ele foi. Ele partiu.

Pela primeira vez, Pedro saiu de casa com um grupo de amigos.
Não com a família.
Não com os braços sempre prontos para aparar quedas.
Mas com o mundo.

Aquilo que muitos — até a família — sempre disseram ser impossível:

“Não dá.”
“Ele não vai aguentar.”
“E se acontecer alguma coisa?”

Pois aconteceu.
Aconteceu o que ninguém previu: ele foi.

E eu fiquei.
Com esse vazio que dança com a alegria.
Com esse eco nas paredes que me lembra que ser mãe atípica também é aprender a confiar.

Confiar no mundo, mesmo que ele não esteja pronto para os nossos filhos.
Confiar neles, mesmo quando ainda não sabem amarrar os próprios sapatos.
Confiar que amar não é conter — é preparar para o dia em que não estaremos mais por perto.

A primeira saída tem sabor de ensaio do futuro.

Porque, no fundo, o que mais desejamos é que eles sejam livres.

Viagens como estas não são apenas passeio — são ensaio de autonomia, treino de coragem, aula prática de confiança.

E talvez, no esforço exausto de proteger do mundo — porque o mundo não se preparou para recebê-los —, tenhamos ficado entre eles e certas experiências.
Não por egoísmo. Mas porque quase nunca há rede, apoio, confiança.
E quando não há ninguém para segurar junto, a gente segura tudo.
Inclusive demais.

Mas há exceções.
E hoje eu quero agradecer uma delas.

A equipe do Paralímpico — esses profissionais que vão além da técnica — está a construir pontes para a autonomia.

Cada mensagem enviada.
Cada foto compartilhada.
Cada detalhe contado da viagem…

É como se me tomassem pela mão e dissessem:

“Ele está bem. Ele está indo.”

E eu acredito. Porque vejo. Porque sinto.

Inclusão não é discurso.
Inclusão é gesto. É presença.
É fazer com que uma mãe consiga, pela primeira vez, dormir sem culpa — mesmo quando chegam mensagens dizendo:

“Como você teve coragem de deixá-lo ir sozinho?”

E é aí que eu entendo:

Coragem não é ausência de medo.
Coragem é o que a gente precisa para não impedir que nossos filhos sejam quem são.

Hoje, Pedro está em outra cidade.
E o mundo vai ter que lidar com ele.
E eu… com esse silêncio.

Um silêncio cheio de barulho.
Um silêncio entre as paredes.
Um silêncio cheio de amor.

Se estás a ler isto e também és cuidador — ou cuidadora — talvez conheças bem esse silêncio que ocupa a casa quando um filho parte pela primeira vez. Um silêncio que não é vazio. É cheio de amor, medo, coragem e, sobretudo, confiança.

Que mais mães, pais, cuidadores e educadores tenham a chance de dizer, com orgulho:

“E ele foi.”

E tu, cuidador(a)? Já viveste algo semelhante?

Deixa nos comentários. Vamos partilhar o peso — e a beleza — de cuidar.

P.S.

Sim, eu posso ligar.
Mas não ligo.
Porque confiar, às vezes, é não interromper.

A equipe envia fotos, vídeos, horários, detalhes…
Café da manhã. Competição. Almoço. Hora de dormir.
Sei de tudo.

Mas mesmo assim, fico aqui — meio fora de órbita,
esperando cada toque no celular como quem espera um sinal de vida.

E isso também é amar:
conter o impulso.
Para que ele continue indo.

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Paulo Augusto da Costa Marques Filho
Paulo Augusto da Costa Marques Filho
21 dias atrás

Lembrei do meu sogro, João Rodrigues Pessoa, conhecido aqui em Cáceres, por Sr João do Bazar do Norte, quanta saudade. Os seus 6 últimos anos eu fui o seu cuidador, não que não houvesse aqueles contratados, mais acredito ser o mais querido por ele, saia de manhã para trabalhar e ele já perguntava ” que horas Paulinho vai chegar ” eram várias perguntas repetitivas. Lembro de nossas brincadeiras quando lhe dava banho, quando ele já estava em estado avançado da doença. Quando viajava a serviço ou mesmo para aqui para ver meus pais, andava 100 km tinha que ligar pra casa porque ele já tinha feito inúmeras perguntas “Paulinho vai demorar ” passaram os anos, vieram a dificuldades outras como usar fraudas, não conseguir mais se alimentar e ele só pedia por mim. Como foi bom tê-lo comigo. Ele foi o pai para meus filhos durante o período escolar. Escola, balé, inglês, beisebol,casa de amigas(os).
Estou aqui escrevendo e, acredite, soluçando. É tanta saudade.
Em Campo Grande tem uma clínica que ensina como ser Cuidador e também uma que dá suporte psicológico aos cuidadores que venha a precisar.
Obrigado Cícera pela oportunidade de relatar um pouco da minha maior SAUDADE.

Vera Lúcia de assunção Rodrigues
Vera Lúcia de assunção Rodrigues
21 dias atrás

Chorei……lindo demais ❤️🤩

Kelem
Kelem
21 dias atrás

Sinto Pedro em cada presença citada na viagem e sinto Pedro em cada ausência que você aponta dentro de casa. Pedro sempre foi confiante… até demais quando nos assusta com sua fugas (e ele nunca esquece o dia em que saiu sozinho da igreja e eu fui atrás achando que ele queria fugir para rua) ou quando circula pela casa colocando o quer no lugar em que acha que deve estar. Pedro Confiante, hoje compete longe de você, longe do aparato familiar doméstico, mas perto do aparato Paralímpico que permitiu a ele alçar grandes voos.

Psi.Claudia Oliveira
Psi.Claudia Oliveira
21 dias atrás

Crônica que emociona e alegra
Tenho acompanhado pelas redes sociais a viagem e ver a alegria deles em estarem voando é bálsamo aos dias incertos, porém existentes.
Eles seguem quebrando os copos e nos seguimos orgulhosas, sabendo que o maior troféu são eles.
🌻☺️💙

Josefa Norma de Sousa
Josefa Norma de Sousa
21 dias atrás

Que máximo! Todas as experiências são significativas, para o desenvolvimento social, e Pedro é corajoso com está mãe destemida, que vive em busca de proporcionar experiências, deixando legados com resultados surpreendente!
Na vida vale e para vida vale;
Levar leveza, com a alma leve!
Leve amor, por onde for!
A vocês Cícera e Pedro todo meu carinho e admiração!💞💝

Josefa N. Sousa

Nancy
Nancy
20 dias atrás

Maravilha de liberdade que nos amedronta. Quem sabe se entenda melhor a liberdade quando observamos e aprendemos com nossos filhos, sobrinhos que assim como Pedro e Séfora nos mostram a liberdade de ser assim, simplesmente assim…sem receio do outro.

ROSIMAR DE CARVALHO
ROSIMAR DE CARVALHO
20 dias atrás

Que gesto lindo Cícera ☺️ que ele vá outras vezes, e que voe! Orgulhosa do Pedro 😍

Ana
Ana
19 dias atrás

Momento maravilhoso que vai ficar guardado na memória de todos que participaram do evento ou que ficaram a esperar que o participante volte. Ser mãe é isso…. amor sem medida.

Maria Rejane
Maria Rejane
19 dias atrás

Emoção transcrita…lindo relato Cícera.

Adriano Lopes
Adriano Lopes
17 dias atrás

Cícera, que crônica maravilhosa e cheia de verdade. Suas palavras atravessam o coração de quem vive essa mesma travessia silenciosa. Como pai atípico, senti em cada linha o eco do que tantas vezes me passa pela alma — esse misto de amor, medo e coragem que nos acompanha desde o primeiro olhar até o primeiro “ele foi”.

Ser pai ou mãe atípico é aprender, todos os dias, a equilibrar o instinto de proteger com a necessidade de permitir. É descobrir que o amor verdadeiro não é o que retém, mas o que prepara o outro para voar — mesmo sabendo que o mundo, tantas vezes, ainda não aprendeu a acolher.

Seu texto é mais do que uma crônica; é um espelho do que significa acreditar na autonomia, mesmo com o coração apertado. É um lembrete de que a inclusão real acontece nos gestos, nos olhares, nas mãos que se estendem.

Que possamos, como você tão bem expressou, continuar a dizer com orgulho, entre lágrimas e sorrisos:
“E ele foi.”
E nisso há uma beleza que só quem ama profundamente consegue compreender.

Adriano Lopes
Adriano Lopes
17 dias atrás

Cícera, que crônica maravilhosa e cheia de verdade. Suas palavras atravessam o coração de quem vive essa mesma travessia silenciosa.
Como pai atípico, senti em cada linha o eco do que tantas vezes me passa pela alma — esse misto de amor, medo e coragem que nos acompanha desde o primeiro olhar até o meu futuro “ele vai”.
Ser pai ou mãe atípico é aprender, todos os dias, a equilibrar o instinto de proteger com a necessidade de permitir. É descobrir que o amor verdadeiro não é o que retém, mas o que prepara o outro para voar — mesmo sabendo que o mundo, tantas vezes, ainda não aprendeu a acolher.
Seu texto é mais do que uma crônica; é um espelho do que significa acreditar na autonomia, mesmo com o coração apertado. É um lembrete de que a inclusão real acontece nos gestos, nos olhares, nas mãos que se estendem.
Que possamos, como você tão bem expressou, continuar a dizer com orgulho, entre lágrimas e sorrisos:
“E ele foi.”
E nisso há uma beleza que só quem ama profundamente consegue compreender.