O cuidar requer o direito de ir e vir

Quando temos filhos autistas, raramente eles saem de casa sem a nossa companhia. Ao deixamos sair com outra pessoa é porque temos certeza que a outra pessoa o conhece bem e, tem habilidade de lidar com todas as suas estereotipias.

Outra regra consensual é que está pessoa seja alguém com quem nosso filho tenha afinidade. E minha irmã Maria do Carmo construiu essa afinidade com Pedro desde que ele nasceu. Quando saímos do Centro Cirúrgico, ela já estava lá para recebê-lo. Fomos para casa e ela passou uma semana a dar banho em Pedro, trocá-lo, cortando as etiquetas de suas roupas para não machucar sua pele. Eu, a mãe, não tinha pensado nessa possibilidade.

 E, o cara gostou desses mimos, pois até hoje, todas as suas roupas precisam ser tiradas as etiquetas e, quando por acaso esquecemos de fazer isso, ele acaba rasgando a roupa para tirá-las.

Quando minha sobrinha Claudia morava aqui, os dois saiam muito, às vezes passavam o dia juntos. Mas ao anoitecer ele sempre voltava para casa, pois nunca aceitou dormir na casa dela.

Entretanto na casa de minha irmã ele fica tranquilo. Claro que há todo um ritual, um dia ele vai na missa, outro dia a madrinha Kelem vai visitá-lo e lhe levar revistas. E no terceiro dia, já acabou a programação. É hora de buscá-lo.

Desta vez, foram para Lambari D’Oeste-MT na sexta-feira e, como tinha a eleição no domingo e eu estaria de férias no dia primeiro de novembro, conversei com ele e expliquei que o buscaria na terça-feira de manhã.

No dia, já pronta para sair, minha irmã liga e diz que manifestantes tinham fechado a ponte, porque não aceitam o resultado da eleição e estão pedindo intervenção das Forças Armadas.

Calculem a minha angústia, pois enquanto alguns diziam que eles me deixariam passar por que meu pai é idoso e Pedro não poderia ficar sem a medicação para epilepsia, outros diziam que era arriscado.

Em meio as incertezas, ligo para minha irmã e pergunto como está Pedro. Ela afirma, está tranquilo, esperando você chegar…

Então converso com ele e explico que não era possível ir naquele momento, mas que na quarta-feira, irei. Ele concorda de boa.

No outro dia vou cedo ao Cemitério, ligo para uma amiga e ela informa que a ponte está liberada, mas os manifestantes continuam lá. Então vou à Ponte, converso com um policial e manifestantes, que garantem que eu posso ir, pois eles não vão fechar a passagem.

Volto em casa, pois preciso levar roupa para meu pai, que está na casa da minha irmã. Entre pegar as coisas que preciso e falar ao telefone, fecho a porta de casa, tranco o portão e de repente, não acho a chave do carro, procuro na bolsa, dentro do carro e nada.

Sabe aquele instante, que não há ninguém passando pela rua e nem o vizinho do lado está em casa. Vou na vizinha, pergunto se Ana Clara está. Ela diz que não, pergunto por todos. Dona Claudete quis saber o motivo. Fechei o portão, a chave do carro está dentro de casa e preciso de ajuda.

Depois de várias tentativas inúteis para quebrar o cadeado do portão, ela lembra do Eurípedes e vai na casa dele. O filho dele vem com uma escada, pula o muro e abre a porta. Informo onde tem uma chave. Após ele abrir o portão, encontro a chave do carro sobre a mesa, na área.

Chego na minha irmã, encontro um Pedro super feliz. Quando ela diz que vai avisar minha amiga Kelem que cheguei. Na pressa de voltar peço a ela que não ligue. Porém ela ignora meu pedido e liga. Quase quebrei uma tradição de 30 anos.

Minha amiga chega. E, eu informo, já estamos voltando. Minha irmã parecia não ter a menor pressa ou não perceber minha aflição, ao pegar o que precisávamos trazer de volta e ir jogando no porta malas. Insisto… Só volto a respirar aliviada, ao atravessar a ponte. No outro dia, meu corpo tinha transformado em dor, a tensão vivida.

Precisamos exercitar a tolerância e o respeito, pois o direito de ir e vir é um bem precioso.  Precisamos cuidar da nossa liberdade.

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Maria Rejane
Maria Rejane
2 anos atrás

Que angústia!!! Com certeza toda tensão resultou em suas dores. RESPEITAR O DIREITO DO OUTRO É UMA NECESSÁRIO EM TODO LUGAR.

Regma Novakc Locate
Regma Novakc Locate
2 anos atrás

É nescessário mais amor no cuidar

Kelem Cristina de Sene Santos
Kelem Cristina de Sene Santos
2 anos atrás

A liberdade de ir e vir é fundamental em nossas vidas, mesmo para quem não a pode exercitar plenamente. Que possamos seguir em frente apesar dos pesares… como diz mamãe “eu me obrigo a sair da cama todos os dias porque não quero ficar presa a ela…”. E continuo esperando a ligação “Kelem, a Cícera chegou…”… que venham outros tantos anos…

Fernanda das Neves
2 anos atrás

As preocupações e angustias são, sempre, as causadoras das nossas dores físicas mas temos de aprender a serenar mesmo nos momentos mais complicados ou nunca conseguiremos pensar claro. A vida é impermanente e imprevisível e só a confiança em nós e nos outros pode atrair o melhor e as melhores soluções. Confie que todos mudamos e nos transformamos só precisamos de encontrar a paz dentro do coração para que possamos deixar de pensar, antecipadamente, no pior. Por vezes as situações mais caóticas só o são se aceitarmos, à partida, que não há solução. Sei que a sua carga emocional e física é pesada e que mesmo quando delega para poder descansar, está sempre ao serviço pois a logística da sua vida como cuidadora é pesada, mas tem de encontrar as técnicas que lhe podem permitir encontrar a paz nos seus coração e cérebro.
Não vale a pena lutarmos contra a vida … ela vai ter sempre razão e o seu propósito é nos testar. Força e coragem!