O Último Azul — Entre o Direito de Viver e a Realidade de Sobreviver

Uma reflexão sobre o abandono que o envelhecimento escancara

Fui ao cinema com amigas — todas mulheres a viverem “a melhor idade”, bem resolvidas, alegres, com autonomia e vida social ativa. O filme era O Último Azul. E foi impossível sair da sala sem um peso: enquanto algumas vivem a maturidade como celebração, outras a vivem como sentença.

No filme, uma idosa solitária é rejeitada pela própria comunidade. Não por um erro cometido, mas apenas por existir. Ela é denunciada por estar ali.
O que deveria ser uma rede de proteção transforma-se numa rede de exclusão.
E me vi pensando no Pedro — meu filho — e na vez em que fui ao INSS para pedir o que já deveria ser um direito garantido.

Disseram que ele tem direito ao BPC.
O motivo? A renda per capita da casa ultrapassava o limite permitido por lei.
Me explicaram que, talvez, se houvesse comprovação de gastos extras, como fraldas, o auxílio poderia ser reconsiderado.

Fraldas.

Foi assim que tentaram definir o valor da deficiência.
Fraldas — e não cultura, não dignidade, não direito ao lazer, à arte, ao afeto, à autonomia.
Pedi exemplos de gastos aceitos.
Ouvi: “fraldas”, “remédios”, “consultas médicas”.

Nunca ouvi: “direito à vida plena”.

A Constituição diz que todos têm direito à cultura, ao lazer, à dignidade.
Mas, na prática, o que se garante é um cálculo de miséria controlada: um auxílio que impede a fome, mas que não permite a vida.
Ficar do lado de cá da miséria absoluta — e só.

Enquanto isso, vejo minhas amigas dançarem, marcarem jantares, participarem de grupos, viajarem, escolherem seus destinos com a leveza de quem pode.
Há entre elas uma senhora de mais de 70 que ainda usa salto agulha.
E não é vaidade: é símbolo de quem ainda pode andar por si, sem se curvar ao peso das ausências.

Mas sei — e elas também sabem — que essa é a realidade de uma minoria.
A outra parte envelhece em silêncio, escondida nos bastidores, sem espaço para dançar, sem salário para viajar, sem voz para reclamar.
O idoso pobre não é visto como alguém com direito ao futuro, mas como alguém que já devia ter desaparecido.

O Último Azul me lembrou que o abandono não começa com a morte.
Começa quando o outro se torna incômodo demais para permanecer entre nós.

E essa denúncia é nossa — para fazer enquanto ainda temos voz.

Existe mais de uma velhice no Brasil.
E só algumas têm o privilégio de serem celebradas.
As outras são apenas suportadas — quando não descartadas.

Escrevo este texto como quem acende uma vela numa sala escura.
Para lembrar que viver com dignidade não pode ser um luxo.
Deveria ser um direito garantido — para todos.

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Marizete
Marizete
1 mês atrás

Infelismente, minha amiga.
O idoso, em sua grande maioria, é invisível.
Comentei essa semana, sobre o quanto admiro nossos idosos, que vão à pé para o Remanso, rebaixo do sol escaldante…

Porque lá são vistos, ouvidos, considerados…

Conversamos com seus pares, de igual para igual.

Contam suas dores e são consolados…

Se divertem. Tudo está bom para eles. A gente sabe que merecem mais. E nós empenhamos para isso.

Paulinho Costa Marques.
Paulinho Costa Marques.
Responder a  Marizete
1 mês atrás

Minha admirável amiga ! Que lindo texto como uma obra da escrita e tão triste e cruel quanto realidade da vida daqueles menos favorecidos. Não são apenas os ” Pedros ” da vida e os idosos das pireferias. É todos nós da sociedade que não batalhamos para mudar essa realidade. Nossas escolas deveriam ensinar para que nossas crianças aprendessem civilidade, humanidade para termos uma sociedade mais justa mais humana e que olhassemos para nossos irmãos com igualdade . Não tenho o dom da escrita como você minha querida amiga. Parabéns você tocou fundo no meu coração.