As palavras mudam: da Anormalidade à Neurodivergência

Durante muito tempo, falar sobre deficiência significava falar sobre desvio.
Não desvio como singularidade, mas como falha — algo que precisava ser corrigido, escondido, consertado.
As palavras eram afiadas, e ninguém percebia o corte.
“Anormal.” “Defeituoso.” “Incapaz.” “Retardado.” “Mongoloide.”
Termos que hoje soam grotescos já foram usados com a naturalidade de quem descrevia o céu azul.

Não era apenas linguagem: era ideologia.
Uma sociedade que dizia, sem pudor, quem merecia vida plena — e quem deveria se ajustar.

Depois vieram os nomes médicos e pedagógicos.
Pareciam mais neutros, mais técnicos: “deficiente”, “portador de necessidades especiais”, “excepcional”.
A linguagem passou da agressão para a benevolência forçada.
A pessoa deixou de ser “erro” para virar objeto de compaixão.
Ainda assim, continuava prisioneira no mesmo lugar: o da insuficiência.

Era preciso adaptar-se, depender, agradecer.
As instituições se propunham a acolher, mas a porta trazia uma regra escondida:

“Entre, mas sem incomodar o padrão.”

O século XXI trouxe uma virada.
Convenção da ONU e a Lei Brasileira de Inclusão colocaram em primeiro plano a noção de pessoa — e não de defeito.

“Pessoa com deficiência.”

Simples. Direto. Revolucionário.
A palavra pessoa vem primeiro porque a dignidade humana vem antes de qualquer condição.
A deficiência não define caráter, história ou potência.
Não é identidade total — é apenas uma das formas da experiência humana.

O problema deixa de ser o corpo e passa a ser a barreira social: arquitetônica, pedagógica, cultural, afetiva.

E então surge um novo horizonte: a neurodiversidade.
Não é uma correção médica para o autismo, o TDAH, a dislexia.
Não tenta fabricar normalidade — reconhece variação.
Neurodivergente não significa “quem falhou em ser neurotípico”,
mas “quem percebe, sente e processa a vida de outro modo”.

É uma linguagem que tira a pessoa da categoria do defeito e a coloca no campo da pluralidade humana.

A diferença entre normal e comum também precisa de cuidado.
Normal é o que cabe numa norma — e toda norma é política.
Comum é o que acontece com frequência, não o que é superior.

Muitas violências são comuns; poucas são normais.
Muitas experiências são comuns; quase nenhuma é igual.

Quando alguém diz “essa pessoa é normal”, cria o oposto: a que não é.
Quando alguém diz “essa pessoa é comum”, descreve um fato sem hierarquia.

As palavras não são apenas vocabulário.
Elas moldam o modo como crianças são tratadas, como mães são culpadas, como corpos são julgados.
Definem o espaço que cada pessoa tem para existir.

Mudamos de nome porque mudamos de visão — e essa mudança é avanço civilizatório.
Mas ela só é verdadeira quando a linguagem deixa de ser etiqueta e se torna respeito.

Hoje, podemos dizer “pessoa com deficiência”, “pessoa autista”, “neurodivergente”.
Isso não é frescura.
É a escolha de olhar para a vida com olhos menos violentos.

A história ensinou:

quem controla as palavras, controla o destino.

E desta vez, são as próprias pessoas — antes silenciadas —
que reescrevem as palavras e, com elas, o mundo.

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Maria Rejane
Maria Rejane
3 dias atrás

Esses texto não pode ficar somente aqui! Não comente apenas… compartilhem!
Mais um texto maravilhoso Cícera!!

Adriano Lopes
Adriano Lopes
23 horas atrás

A internet teve papel fundamental nessa virada. Foi ali que pessoas autistas, mães, pais, adultos neurodivergentes e movimentos sociais ganharam voz sem filtro, sem intermediários. Paralelamente, parlamentares que também têm filhos com deficiência levaram essa luta para dentro das instituições. Eles transformaram suas próprias vivências em projetos de lei, debates e políticas públicas.