Quando o Sonho Vem Primeiro

Na Praia do Rosa, o vento fala em voz antiga. As ondas recitam histórias que talvez sejam mais velhas do que o tempo, e nós, um grupo de aprendizes do silêncio, viemos escutá-las com James McSill — esse artesão de palavras que nos ensina a transformar vida em literatura. O retiro é mais do que um curso. É um intervalo do mundo, uma pausa funda onde o coração volta a ter som.

Foi aqui, entre cadernos abertos e olhares atentos, que compreendi de novo que, quando não limitamos os nossos filhos, eles sonham onde nós ainda não chegámos.

Pedro, meu filho, está comigo. É autista. Ainda não lê, mas compreende o invisível com uma clareza que me desmonta. Entra na sala em silêncio, observa, escuta, respira o mesmo ar de histórias como quem já faz parte delas.

Naquele dia, ele ficou num canto, sereno, presente — e de repente, disse, com a naturalidade de quem apenas constata o óbvio:

“Estou gostando da aula. Vou aprender a ler e escrever um livro.”

O tempo parou.
Poderia ter respondido com a prudência das mães: “filho, um dia, quem sabe.”
Mas calei-me. E escutei.
Porque às vezes, tudo o que um filho precisa é de espaço.

Espaço para sonhar.
Espaço para desejar.
Espaço para imaginar-se capaz antes de o ser.

Quando não encolhemos o mundo com os nossos medos, eles veem caminhos onde nós só víamos muros.
Pedro ainda não lê, mas já se vê autor.
E isso, compreendi, é o primeiro passo de qualquer criação: ver-se capaz antes que os outros acreditem.

Estar neste retiro — mergulhada em palavras, ouvindo sobre estrutura, conflito e transformação — e, de repente, assistir a esse gesto nascido da alma de um menino, foi como ver a própria literatura respirar.
A alma sabe antes.
O sonho vem antes da técnica.

Pedro não pediu licença para sonhar.
Apenas disse: “Eu vou.”
E nesse instante, percebi o verdadeiro trabalho de uma mãe: não é ensinar o “como”, nem decidir o “quando”. É proteger o solo onde uma frase como essa pode nascer.

Hoje escrevo não como autora, mas como testemunha de um milagre discreto.
Sou filha de um filho que me ensinou a não limitar o sonho de ninguém — nem o meu.

Porque se um menino que ainda não decifra letras já sabe que pode escrever um livro,
então quem somos nós para duvidar do poder da palavra?

📍 Retiro Literário com James McSill
📍 Praia do Rosa, Santa Catarina
📍 Onde nascem histórias — inclusive as que ainda não sabem o próprio nome.

Depois do Sonho

Desde aquele retiro, algo em mim mudou.
A coragem cresceu. A esperança deixou de ser teoria.
Entendi que permitir ao Pedro estar no mundo não é exposição — é partilha.
Porque se o que for criado para ele puder ajudar outros,
então não é apenas um avanço pessoal — é uma semente de futuro.

Se um gesto, um olhar, uma tecnologia ou uma palavra abrir caminho
para que outro autista se comunique, se expresse, se descubra,
então já valeu.

Pedro ensinou-me que quando o sonho vem primeiro,
o impossível apenas se atrasa — mas não desiste.

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Noscilene
Noscilene
4 horas atrás

“Ensina-me a viver”, aprendemos o tempo todo e a experiência com Pedro no retiro de escrita foi um presente. Sim, ele pode sonhar, pode realizar e inspirar outras pessoas a buscarem os seus sonhos. Obrigada pela partilha Cícera!

Maria Rejane
Maria Rejane
3 horas atrás

Como os filhos nos ensinam ….